JORNAL DO GUMA
Da Folha de S.Paulo
A vitória da coligação ultradireitista liderada por Giorgia Meloni, apontada na boca de urna, impressiona no contexto: a ascensão de grupos extremistas na política institucional de países como a França e a Alemanha foi algo naturalizada devido aos acenos feitos por eles ao centro, mas de fato nunca tiveram chance de tomar o poder central.
Na Itália, o premiê mais duradouro do pós-guerra, Silvio Berlusconi, habita a faixa de frequência da direita meio fascistóide, meio fanfarrona, por assim dizer, mas seus governos foram controversos por outros motivos. Ele pode ter degradado a política, mas não tornou o país uma ditadura.
Temos assim uma nova Marcha sobre Roma, para ficar no paralelo com o movimento final da implantação do fascismo sob o ex-esquerdista Mussolini (1883-1945). No fim de outubro de 1922, os paramilitares Camisas Negras que formavam a vanguarda violenta do grupo nacionalista prepararam um golpe.
Eles ocupariam pontos estratégicos da capital naquele dia 28. O governo apavorou-se e quis decretar estado de sítio, o que foi negado pelo rei Vittorio Emanuele 3º (1869-1947), num episódio opaco: ele podia buscar evitar o derramamento de sangue, mas queria ficar no trono como figurante, o que conseguiu.
Seja como for, o rei não só deixou a cidade aberta a Mussolini como o convidou para formar um governo. O resto é história: formou-se a ditadura-padrão dos ultradireitistas emergentes da Primeira Guerra (1914-18), tornada experimento social aberrante sob Adolf Hitler (1889-1945) na Alemanha.
Se a tentação da comparação é grande, por óbvio comporta exageros. Dona de uma trajetória de guinada ambígua ao centro semelhante à da francesa Marine Le Pen, Meloni insinuou na campanha entender as regras do jogo. Condenou a invasão da Ucrânia, ao contrário do problemático parceiro Matteo Salvini, cujo partido Liga uniu-se ao Força Itália de Berlusconi e apoia o Irmãos da Itália da próxima primeira-ministra.
Para governar na caudalosa política italiana, que troca de premiê como troca de camisa há décadas, a provável primeira-ministra Meloni terá de ser mais Berlusconi, a quem serviu como ministra da Juventude em 2008, do que Salvini, que chegou a vice-premiê mas gosta mesmo é da companhia de Steve Bannon e Eduardo Bolsonaro.
Mas a cada assoprada dada pela política de apenas 45 anos, há uma mordida dolorosa: a Itália é uma das principais portas de entrada de imigrantes em situação irregular na Europa, e a xenofobia de seu discurso promete um embate cruel nesse campo. Além disso, ela é uma parceira do húngaro Viktor Orbán, que conseguiu fazer o Parlamento Europeu decretar seu país como uma democracia não plena. Adota o lema fascista português Deus, Pátria e Família, o mesmo macaqueado por Bolsonaro.
Enquanto a verdadeira Meloni não se apresenta, é possível ter motivos para sustentar a versão pós-moderna da Marcha sobre Roma. Aos 19 anos, ela concedeu uma entrevista já como líder destacada do antigo Movimento Social Italiano, principal agremiação neofascista do pós-guerra.
Nela, disse que "Mussolini foi um bom político, e tudo o que fez, fez pela Itália". Claro, isso desapareceu de suas falas subsequentes, mas o seu antecessor na liderança do Irmãos da Itália, Ignazio La Russa, foi claro: "Nós somos todos herdeiros do Duce".
Nada disso sugere que ela tomará posse de camisa negra e fazendo a saudação romana, que aliás ela pediu que fosse evitada por seus seguidores. Como a própria Meloni afirmou, a direita italiana hoje é pós-fascista --resta saber do que ela está falando na prática.
Algumas dicas podem ser encontradas na política externa de Bolsonaro em seus dois primeiros anos, quando o Itamaraty virou playground de terraplanistas ideológicos. Assim como o ex-chanceler Ernesto Araújo, Meloni vê o Grande Satã não só no islamismo de imigrantes, mas numa certa "esquerda globalista" financiada por nomes como o do judeu húngaro George Soros, não por acaso pária para Orbán.
A ascensão da ultradireitista na Itália assusta por outros motivos, como lembrou o escritor italiano Roberto Saviano. O país sempre foi um tubo de ensaio de políticas degeneradas: deu Mussolini antes de Hitler, o terror esquerdista das Brigadas Vermelhas antes da onda que varreu a Europa nos anos 1970, Berlusconi e o Movimento 5 Estrelas antes de Donald Trump.
O motivo de fundo, é possível argumentar, é o fato de a Itália estar num ponto de fratura civilizacional, perto de um Oriente Médio e de uma África turbulentos, e ao mesmo tempo tendo uma economia enorme, gerando tensões sociais. E as respostas simplistas do fascismo sempre encontraram eco em tempos de crise como o atual, com o inverno de Putin assombrando líderes europeus.
Nesse sentido, a nova Marcha sobre Roma tem um marco temporal, mas vem acontecendo há décadas, porque o fascismo, com diversas gradações, nunca deixou de fazer parte da paisagem política italiana.